Em busca do resgate da autêntica raiz cultural
"Se cada nordestino não se atentar para o que está acontecendo, o próprio nordestino destruirá, com seus gostos flutuantes, a sua maior cultura musical – o forró"
O desabafo de artistas nacionais e músicos consagrados, com relação ao explícito desrespeito cultural pelo qual vem passando os tradicionais festejos nordestinos, onde a cada ano, a tradição do nosso povo está sendo engessada através da cultura de outras regiões e empurradas goela a dentro nas festividades públicas, através de administradores municipais, produtores musicais e veículos de comunicação, respingou em nossa terra através da icônica artista sergipana Antônia Amorosa, que não é de agora que vem sentindo na pele este descaso cultural e como um espécie de espinha presa na garganta, chegou até a engavetar a carreira, para evitar bater de frente com os tidos "donos da situação", resolvendo emudecer para não contrariar e ferir brios.
Mas, como tudo, uma hora o caldo sempre entorna, ela resolveu arrancar do peito todo o sentimento de angústia e de insatisfação, e somou-se aos demais artistas que usaram das mídias sociais e entrevistas para fazerem o seu lamento e as suas reivindicações, deixando claro que a diversidade de um povo condiz primeiro com a preservação da cultura de um lugar. Não queiramos jamais dizer que os outros não têm vez, até por que existe também o gosto popular a ser respeitado, mas sim que o espaço de cada um começa quando termina os das raízes locais, inerentes a uma cultura, a um comportamento, uma tradição e uma história que atravessa muitos e muitos anos.
Bastou uma declaração dela numa rede social, para o assunto viralizar em todo o país, fortalecendo o pertinente, coerente e mais que oportuno discurso, com adesão de apoios vindos de todas as regiões do país.
Para quem talvez não saiba, Antônia Amorosa tem régua e compasso para bater forte nesta tecla, afinal detém 32 anos de carreira, mais de 60 prêmios como cantora, com destaque para as premiações de melhor intérprete no festival "Canta Nordeste", em 1993, evento pilotado pela Rede Globo; melhor intérprete do país, na "Festa da Música Brasileira", no Rio de Janeiro, em 2001; tendo recebido no ano passado o maior prêmio de consagração de um artista nordestino, o "Troféu Gonzação", em Campina Grande, na Paraíba, ao lado de Carlinhos Brown, Elba Ramalho e Marina Elali.
Atuou em mais de 80% dos Estados brasileiros, além dos países da Alemanha, Áustria, Estados Unidos e Inglaterra. Foi diretora de arte e cultura da Funcaju, criando o mais importante espaço de preservação do forró, o "Casarão da Clemilda".
Amorosa é membro das Academias Itabaianense e Aracajuana de Letras, autora de cinco livros, colunista há cinco anos no Jornal Correio de Sergipe, além de ter gravado sete CD's e ter participado de 12 coletâneas. Em breve, estará lançando o seu novo disco "Raiz, Amor e Fé", que contará com um dueto com a consagrada cantora Marinêz, trabalho musical desenvolvido pelo filho da grande cantora paraibana, o maestro Marcos Farias.
Através desta exclusiva para o BACANUDO.COM, acompanhe os pontos de vista coerentes e sensatos desta exímia e respeitada artista a respeito do tema que tomou conta do país, principalmente do Nordeste. Anavan!
BACANUDO - A cada ano que se passa percebemos uma crescente descaracterização dos nossos festejos juninos. O que está acontecendo?
ANTÔNIA AMOROSA - Um dos motivos que me fizeram sair dos palcos em 2010 foi este e, o principal motivo do meu retorno este ano, também. Percebi que não estava ajudando com o meu silêncio, nem atuando timidamente, nos bastidores. Quando tive a chance de estar no poder, dentro do espaço que me fora dado, consegui criar projetos que ajudaram a fortalecer o movimento, como o 'Casarão da Clemilda', no ForróCaju. Mas, sei que se trata de um ponto num universo mais complexo que envolve a educação familiar e escolar, a mídia e a visão dos gestores. Se cada nordestino não se atentar para o que está acontecendo, o próprio nordestino destruirá, com seus gostos flutuantes, a sua maior cultura musical – o forró – que deve ser a maior atração dos festejos juninos, ao lado das nossas quadrilhas, culinária e cenário característico. Portanto, o maior problema está na responsabilidade do próprio nordestino em lutar, ao lado dos artistas, pela cultura que lhe pertence, e não aquela que está sendo colocada “goela abaixo”,através da mídia.
BACANUDO - A quem pode ser atribuída a culpa dessa desvalorização cultural?
AA - São vários culpados. E cada um deve assumir a sua cota. A primeira delas começa em casa. Crianças nascem todos os dias, e os pais, que esquecem de onde seus próprios pais e avós vieram, não ensinam a estas crianças sobre o valor da nossa cultura. A escola, em parte, faz sua parte, mas ainda é insuficiente para a demanda. Em seguida, vem a mídia que muitas das vezes, ao invés de cumprir seu papel social, se submete à “grana que ergue e destrói coisas belas.” E, na sequência, vêm os empresários, gestores, artistas..., que preferem cantar o modismo do que a verdadeira cultura; e, quando decidem defender uma cultura, andam na contramão, cantando e tocando com o chapéu dos outros, quando deveria usar o seu próprio chapéu. Na verdade, ao que parece, os “novos nordestinos” têm vergonha dos nordestinos que os antecederam e lutaram muito para que eles se tornassem o povo quase esclarecidos que são hoje. Porque se fossem realmente cultos, não permitiriam tamanha violência contra sua própria história.
BACANUDO - As tradições nordestinas estão perdendo espaço para a cultura de outras regiões? Por quê?
AA - Porque nossa capenga educação forma o cidadão para uma profissão, mas não prepara o cidadão para a boa cultura. Nas escolas, esta matéria não é levada a sério, tudo é feito com improviso, não havendo uma política permanente de formação para mostrar para as novas gerações que o forró é mais do que um estilo – é a biblioteca musical da história do povo nordestino, num período crítico da nacionalidade brasileira, que só conseguiu se consolidar, graças à atuação de artistas como Luiz Gonzaga, que cantou e contou a história do nosso povo, com poesia, elegância, simplicidade e sabedoria. Esta parte da história que envolve secas rigorosas, abandono político, imigração, doenças e morte da nossa gente, não pode ser esquecida. Nos festejos juninos, prevalece nosso orgulho de sermos nordestinos, de termos vencido algumas dificuldades e construído uma nação paralela, dentro do Brasil. A partir do momento que “sertanejamos” nosso São João, estamos dizendo não ao nosso passado, presente e futuro, para dizer sim, à vitória de outras regiões. Não significa
dizer que tenhamos que ser fechados para eles, mas não podemos nos negar para tirar o espaço de quem é da gente, e priorizar a cultura de outros. Neste ponto, há linguagens e signos que revelam nossa estima e capacidade de autoconhecimento. O nordestino está devendo uma autoreflexão sobre seus próprios valores culturais.
BACANUDO - Alguns artistas tradicionais e icônicos, assim como você, estão reclamando e batendo fortemente na tecla dessa desvalorização cultural. Esse grito pode resultar em vitória?
AA - Me preocupo, muito mais com o percurso, do que com o resultado. Porque prefiro a ação do que a omissão. Há regras midiáticas que precisam ser revistas, especialmente nas rádios do Brasil, que recebem concessões e têm como uma das principais missões, fortalecer o movimento cultural da região onde se estabelece. Mas, o que temos visto é a determinação da grande mídia impondo sobre as pequenas, e fragilizando mercados que poderiam caminhar independentes e fortes, ao lado das suas representações musicais. O Brasil é gigante e cabe todos, se cada um souber o seu lugar. Não significa que tenhamos que criar sistemas de isolamento. Ao contrário. Podemos interagir, sem perder o equilíbrio proporcional de deixar mais para quem é de casa, e menos para quem é de fora. Mas, a cultura que prevalece não é esta. E isto é muito ruim para o desenvolvimento cultural da imensa diversidade brasileira. O povo está “osmoseado” (onde a repetição de algo cria vício), por produções duvidosas, sem qualidade textual, caprichando nos arranjos e no visual, mas empobrecendo cada vez mais, o nível musical do povo brasileiro, que tem boa música, mas não consome.
BACANUDO - Por que já não se fazem festejos e não tem sido criadas programações como antigamente?
AA- Porque a madre desta cultura, que são os lares nordestinos, foi substituída pela cultura das ruas. Antes, estas festas aconteciam como ocorre no natal. As famílias se reuniam para brindar os festejos juninos, caprichando na culinária, decoração, figurino, música. O abandono desta tradição que deveria ser mantida pelas famílias nordestinas foi transferida para os gestores públicos, que nem sempre cumprem com seu papel em preservar a cultura permanente. Nesta luta de braço, a cultura paralela está engolindo, em altas doses, a nossa cultura mais autêntica.
BACANUDO - Os artistas e músicos nordestinos estão sendo desvalorizados e jogados ao escanteio ou esquecimento?
AA- Proporcionalmente, sim. É necessário que cada gestor compreenda qual o seu papel dentro do universo cultural onde atua. Se ele tem 100 reais para gastar, ele precisa fazer o levantamento da demanda local, e destinar o maior percentual para aqueles que dependem das ações dele para sobreviver dignamente. Somente na sobra, se sobrar, é que se paga ao vizinho ou o forasteiro para mostrar sua cultura. Mas, como a cultura do pão e do circo jamais saiu do imaginário popular, o circo de fora é sempre mais bonito do que o “palhaço” de dentro – onde todos veem o riso do palhaço, mas não consegue ver a sua lágrima. E o gestor, sabido, sabe usar isso a seu “favor”. Afinal, a mediocridade de muitos, alimenta a artimanha dos poucos espertos.
BACANUDO - Por onde deve e de que forma pode ser feito o resgate das tradições?
AA- Particularmente, só acredito numa mudança através de uma lei que, sendo aprovada, deve ser fiscalizada para seu cumprimento. Lei sem cobrança é lei morta. Ao mesmo tempo, para tentar salvar as próximas gerações, defendo técnicas de ensino que fortaleçam o conhecimento da nossa cultura e a importância da sua preservação. O resgate de tradições que honram a história de um povo. Já fui recebida em residências, tanto na Alemanha quanto em Porto Alegre, onde os anfitriões usavam trajes folclóricos com um orgulho estampado no rosto. Em Sergipe, jamais fui convidada para um almoço ou jantar, onde os convidados estivessem caracterizados de folcloristas sergipanos. Está mais do que na hora de fazermos algo assim. Está lançado o desafio. A propósito - Uma vez, fui convidada para cantar no Circo do ator Marcos Frota. Cantei. Vestida de São Gonçalo!
BACANUDO - Você, como artista, também vem sentindo um certo desprezo pelo trabalho desenvolvido durante décadas e pela bandeira que sempre hasteou, em torno da tradição nordestina?
AA - Afirmo que a música me deu amigos, amores e irmãos. A música me deu prêmios, reconhecimento, popularidade. Estabilidade, não. Já fiz muitos shows de graça, fora aqueles que fiz e jamais recebi – por considerar que fui amadora em acreditar nas pessoas, jamais fui na imprensa entregar nenhum deles. Você não imagina como comprometeu minha cidadania e meu nome. Mas, carrego uma esperança e uma fé acima de qualquer compreensão. A música, para mim, é missão. Mas, ela não me deu em estabilidade, o que dei a ela em fidelidade, e isso passa pela consciência social do ambiente onde o artista atua. Sei que muito do que faço, só será reconhecido depois da minha morte. Só espero em Deus que eu consiga honrar com tudo que preciso, sem que seja preciso entregar ninguém. Sou uma descendente de Abraão, assim creio. E os filhos de Abraão só colhem suas lutas quando os anos cobrem os fios dos seus cabelos. Permaneço com uma espada invisível nas mãos e os olhos em atalaia. Sou uma fênix e uma guerreira. Esta vitória, pela fé, há de vir porque sei que plantei com profundo amor. Como sei que há raízes que são tão profundas, que demoram a surgir na superfície. Portanto, o tempo não é meu, mas de Deus.